Domingo, quinze horas. A última vez que procurei mudar de rotina, na qual há mais de vinte anos me via subjugado a ela, terminou me custando um preço - que não me onerou as minhas finanças, mas a minha consciência de trabalhador, acima de tudo. Pois, como todo homem do ofício eu teria que, no dia seguinte, justificar a falta ao expediente, justamente num dia em que era de suma importância para instituição na qual sou servidor e que a minha presença não era de suma, mas de uma importância generalizada do conjunto. Há vinte anos sempre fazendo a mesma coisa, terminei por esquecer o dia do aniversário da Patrícia.
Para elucidar melhor o que digo sobre a mudança de rotina é que, quando solteiro condicionei a minha vida inteira a reservar os dias de Domingo para o meu sagrado repouso das minhas “farras” de finais de semana. Tinha hora para sair, às sextas-feiras e, como bom católico, hora para retornar ao Domingo, de preferência pela manhã. Casado, porém, tenho procurado condicionar a mesma rotina de outrora que é ter o Domingo exclusivamente para o descanso, contudo nem sempre isso é possível. Visto que, quando se casa não mais se pode ter domínio sobre você mesmo naquilo que até parecia muito salutar para a vida. Tudo porque você deixa de ser você mesmo. Você agora é você, mulher e filhos e estes são os que mais transgridem a rotina, revolucionam a vida de tudo e de todos. E adeus “apartamento azul”, adeus lugar sagrado para se meditar, conversar consigo mesmo. Não, nada disso existe mais... sem contar as investidas da mulher - eterna revolucionária nos destinos dos homens - que, com o seu jeito sutil, chega taciturna, como quem nada quer e de repente estar a dominar a situação. Não são raros os exemplos dessas investidas femininas. Remoto e presente são os exemplos de Eva, de Cleópatra, de Maria Bonita e de Marly, minha esposa. A mulher investe naquilo que é próprio de seu ethos e menos e distante do do nosso - homem que sempre se achou dono da situação -, mas que em nada vem a criar constrangimento ou desentendimento, porque se a faz, é pela justeza de seu amor e pelo amor de todos.
Mas, afinal, e o matinê circense?
Sim, lá fui eu com mulher e filhos à matinê em pleno Domingo, à tarde. Não me lembro justamente o dia em que fui a um circo pela última vez, faz tanto tempo que hesito em dizer se fui mesmo ou se assisti pela tv. Em verdade, se fui ou não, o que tenho a dizer é que o tempo, no mundo circense, não mudou muita coisa não. Talvez para os nossos pequerruchos também estivessem a ocorrer o mesmo, ou seja, a sentir o que eu estava a sentir, mormente, para o mais novo que não desgruda da televisão e que está de saco cheio de ver e ouvir falar de “Beto Carreiro”, o dito circo que havia de se instalar justamente, aqui, na nossa terrinha.
E lá se deu, quinze horas e trinta minutos - meia hora após o previsto - tudo que eu já esperava e que os nossos filhos já sabiam de cor e salteado do que existe no mundo circense. A dança do ventre, o equilibrista numa bicicleta com uma vara sobre um cabo de aço bem esticado, apresentação dos pobres e coitadinhos animais (os dálmatas, os chimpanzés, os cavalos), os eternos palhaços com seus risos congelados, os los Quênias, Cristal, a mulher que faz piruetas pendurada numa enorme cortina, e por fim, a apresentação do barulhento e ensurdecedor globo da morte.
Entretanto, a todo esse eterno espetáculo do viver circense, algo de insólito e de enigmático me apareceu - uma atração a parte. Eis que, assim que iniciou a primeira apresentação, surge entre as arquibancadas uma mulher morena, de cabelos e olhos pretos; baixinha, magra, um tipo de “Sônia Braga” de circo, com uma máquina fotográfica nas mãos a fotografar, com certa particularidade, as crianças. Com uma praticidade de “fotógrafo-repórter” ela procurava registrar a pessoa na sua intimidade. Ela fazia tudo isso com uma seriedade de pedra, não se via um sorriso sequer em sua face, pensei quanto ela carecia de um sorriso congelado de palhaço.
No final da última apresentação reapareceu a “Sônia Braga”, com a mesma carência de riso. Desta vez, voltava com uma lanterna e uns monóculos. Dirigia-se, justamente àquelas crianças que antes ela fotografara com a praticidade de “fotógrafo-repórter”. O monóculo era um chaveiro, um suvenir, com a foto da criança, como lembrança do circo no valor de cinco Reais. Não me lembro de ela ter nos fotografado com os nossos filhos - mágica circense? Só sei que ela foi à mãe dos meninos e entregou-lhe um monóculo, que ela (a mãe), também, não o quis comprar.
Apesar da seriedade da morena, sem dar sequer um sorriso, ela também não exprimia uma palavra. Chegava, entregava o monóculo e, se alguém comprava, ela recebia o dinheiro e saía taciturna, a executar a sua tarefa, tão melancólica, quanto o que está por trás dos risos congelados dos palhaços. Porém, estes, eram profissionais da felicidade, em que o público dizia com todos os risos que valeria à pena transgredir as regras, tudo em nome das crianças.
M. C. Garcia
Crônica inédita do livro CRÔNICAS DE UMA CRÔNICA VIDA, que foi lançado, na XXI Bienal Internacional do Livro de São Paulo, entre 12 e 21 de agosto de 2010).