A Lucia Fidalgo
À tarde, o sol se rendera às carregadas nuvens das dezesseis horas contumazes de Belém. A enorme praça defronte ao mercando central de Mosqueiro estava solitária e as barracas de alimentação ensaiavam acanhadamente se abrir, após costumeira sesta das barraqueiras, todas, bem uniformizadas de branco e tocas. A única existência móvel, naquele ensejo de taciturnidade, eram três transeuntes que turistavam pelas ermas calçadas, rumo ao trapiche, onde alguns curumins sapeavam de sobre o para peito de madeira nas águas barrentas do Rio-praia.
A praça de alimentação, diferentemente das dos shoppings da vida, é ornamentada de barracas ao ar livre que vendem de tudo que Belém pode oferecer de mais típico da sua região; e uma peculiaridade marcante é que, apesar de haver barracas do artesanato local, o destaque fica para as barracas de alimentação com tapiocas de vários tipos e gostos, vatapá, maniçoba, tacacá, sorvetes de cupuaçu, açaí, bacuri, bacaba, são tantos comezinhos que não se vê a hora de se deleitar de um bom prato típico daqueles.
As/os três jovens: Lúcia, Otávio e Maurício retornam do pequeno porto e logo enchem os olhos de um brilho encantador, quando percebem que já existem algumas barracas abertas e, certamente, pela hora que transitavam a barriga já dera sinal de degustar algumas coisitas deliciosas.
Exaustos, sim. Esfomeados? Jamais. Por que “fazer boquinha” (comer) em Belém parece ser uma prática comum das pessoas por ali, isto é, também diante as diversidades e opções de comida existentes em cada esquina da praça, da rua, do mercado, do shopping, etc. E quão tentador é, que ninguém consegue escapar de cometer o pecado da gula, até mesmo, os mais ditos cristãos, não resistem. É uma coisa inacreditável!
Sentam-se à barraca de Áurea, porque todas são identificadas com o nome da dona do recinto comercial, e logo pedem para preparar três tapiocas recheadas a queijo e presunto com refrigerante da terra: tubaína, baré, guaraná.
Faço o mesmo itinerário da tríade de canto a canto da praça de posse da câmera digital registrando detalhes explícitos do lugar, assim como, a igreja matriz, o mercado municipal, o coreto, a estátua de Vênus, as barracas de alimentação e principalmente o estranho e irreverente banco amarelo dos Cornos, ornado com uma extravagante cabeça de boi, com chifres enormes; vou até ao pequeno porto de madeira de lei com toras que parecem mais de concreto.
Retorno à praça, e a tríade de jovens na barraca de alimentação já degustam deliciosas tapiocas. E como também sou filho de Deus, não resisto extrapolar já os quatro quilos adquiridos numa quinzena apenas. Agora, não são mais três, são quatro, mais sucos de laranja em copos duplos.
Aguardava o preparo da minha tapioca ao sabor da casa, quando dona Áurea me aponta que alguém está a me chamar, há alguns metros atrás de mim. Dirijo-me, naturalmente até a mulher, a qual, não difere muito das muitas mulheres das muitas cidades turísticas do Brasil que vivem a pedir, a mendigar, a se prostituir e a se utilizar do mesmo artifício quão desgastado, mas insistente, que é de pedir uma passagem para ir a tal e qual lugar que nunca irão chegar, porque isso, porque aquilo; aquela velha pendenga de sempre. Afirmo ajudar-lhe, mas que me aguardasse um pouco; estava sem dinheiro trocado, após pagar a despesa dar-lhe-ia o valor solicitado. Retorno ao banco e volto às costas para a pedinte.
Não decorridos mais que cinco minutos, a barraqueira mais uma vez me aponta que a suposta viajante continua a me chamar. De repente:
- Desarerê catiploque! O homem aqui é casado! Sai fora!
- Surpreendi-me com a espontaneidade explosiva, porém, genuína e pertinente de Lucinha, tia dos meus filhos, que se encontrava de frente para a estranha. Sequer olhei mais para a pedinte. Não sei a que destino levou.
- São seus filhos? Perguntou-me dona Áurea.
- São sim senhora. Respondi-lhe sem hesitação.
- E ela, é a sua esposa? Insiste a indagar-me, mas agora, com um certo ar de curiosidade e constrangimento.
Não. É minha cunhada. Concluí reflexivo pela riqueza do súbito.
*M. C. Garcia (Crônica inédita do livro CRÔNICAS DE UMA CRÔNICA VIDA, que foi lançado, na XXI Bienal Internacional do Livro de São Paulo, entre 12 e 21 de agosto de 2010).