sexta-feira, 2 de abril de 2010

Compaixão e comunhão: duas chaves para ler o mistério da paixão de Jesus



Ao aproximar-se a celebração da Páscoa é de se esperar que o melhor de nossa atenção se volte para o mistério da Paixão de Jesus, na qual a Revelação cristã diz que se revelou nossa salvação definitiva. 

No entanto, em nossa cultura de hoje, que valoriza o bem-estar, o prazer, o ter, pode ainda encontrar na contemplação de um Crucificado  a chave para entender sua própria vida?  Mais ainda: a Revelação do Deus Todo Poderoso e Criador, que nunca ninguém viu, pode ser visto e contemplado na figura des-figurada do pobre carpinteiro de Nazaré, entregue à justiça dos homens e por ela injustamente condenado, torturado e morto?  

Com palavras radicais e impressionantes, o apóstolo Paulo descreve o mistério que o fascinou no caminho de Damasco e mudou sua vida, convertendo-o de perseguidor em perseguido: o mistério do abaixamento e humilhação do Verbo de Deus até as últimas consequências.  Trata-se do famoso hino cristológico que está no 2º capítulo da Carta aos Filipenses:


"Ele  tinha a condição divina
mas não se apegou à sua igualdade com Deus
Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo
assumindo a condição de servo
e tornando-se semelhante aos homens.
Assim, apresentando-se como simples homem,
humilhou-se a si mesmo,
tornando-se obediente até a morte e morte de cruz!"
Fil 2,5-8
Paulo começa, portanto, afirmando que Jesus Cristo é Deus: "Ele tinha a condição divina".  Mas revelou-a a nós,  não ofuscando-nos com seu esplendor nem esmagando-nos com seu poder, nem mesmo ou muito menos repartindo ordens ou castigos com sua autoridade.  Ele o faz despojando-se da condição divina que é a sua, à qual "não se apegou".  "Esvaziando-se de si mesmo" e assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante a nós.

Qual o sentido de tudo isso?  Que sentido tem um Deus esvaziar-se de suas prerrogativas e querer ser encontrado ao nosso lado, semelhante a nós, em situação de igualdade ou mesmo de inferioridade e humilhação ("humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte de cruz").

Parece que o primeiro sentido há que encontrá-lo na própria identidade de Deus. O mais profundo desta não é a onipotência, mas a vulnerabilidade.  Deus é vulnerável pelo amor que nos tem.  Por causa desse amor desce de sua eternidade para dentro de nossa temporalidade histórica.  Sujeita-se ao nosso tempo, limita-se por nossos espaços, serve-nos ali onde estamos. Encarna-se em nossa carne mortal, nasce de mulher, sujeito à Lei, sem lugar para estar.  O Verbo pronunciado desde toda a eternidade tem que aprender a falar, a andar; tem que ser ajudado nas coisas mais simples como qualquer ser humano.  Participa em tudo - menos no pecado - de nossa fragilidade, de nossa vulnerabilidade.  Porque nos ama.  Apenas por isso. Livremente e porque assim deseja aproximar-se de sua criatura pecadora.

Uma vez constatado, com estupor, esse mistério, há duas palavras que, ajudando-nos a compreender o sentido do mistério da Paixão de Jesus, ajudam-nos a ver o sentido que deve ter, à luz desse mistério, nossa própria vida humana: compaixão e comunhão.  

Somos humanos na medida em que somos capazes de com-paixão.  Em uma sociedade de bem-estar, em que somos acossados diariamente a consumir, a desfrutar impunemente das benesses e delícias do prazer e do progresso, onde somos instados a prestar atenção apenas nas pessoas que podem trazer-nos algum benefício ou retribuir-nos de alguma forma os serviços que lhes prestamos, a Paixão de Jesus nos ensina a com-padecer. A abrir o coração e colocá-lo ao alcance do sofrimento e da dor humanas. A deixar-nos configurar por ela, afetar por ela, ser tocados por ela.  E deixar que ela comande nossos atos e decisões.  Com-paixão, padecer com: esse é o segredo da vida vivida em plenitude.  Solidarizar-se com o outro naquela situação onde ele ou ela não nos pode retribuir, pois está reduzido apenas a uma dor sem limites e sem redenção, a um sofrimento sem explicações.

Somos humanos na medida em que somos capazes de comunhão. Comungar com o outro, com sua dor e sua alegria, com sua esperança e sua angústia.  Não querer ficar apartados ou distantes das situações que estão sendo vividas e sofridas pelo mais humilde e obscuro de todos os nossos semelhantes - isto é comunhão.  É a solidariedade levada a suas últimas consequências.  Tudo que afeta o outro me diz respeito e é meu também.  Não só seus triunfos ou seus êxitos.  Mas também e, sobretudo, seus fracassos, sua solidão, suas incompreensões, sua pobreza. Aquilo pelo qual ninguém o acompanha e que o torna tão repugnante que não pode atrair os olhares nem o interesse de ninguém.  Isso é a verdadeira comunhão e só os seres humanos são capazes disso.

A compaixão e a comunhão levaram Jesus de Nazaré a Jerusalém, obediente ao desejo do Pai que queria resgatar  e reunir todos os seus filhos dispersos e perdidos, mostrando seu verdadeiro e amoroso Rosto.  A compaixão e a comunhão atraíram sobre ele o ódio do mundo e a violência dos que o condenaram e mataram.  A compaixão e a comunhão nos salvaram e nos salvam a todos de uma vida vazia e sem sentido, que aposta em objetos efêmeros e voláteis, que hoje nos atraem e amanhã servem apenas para o lixo e a poluição que ameaça o planeta.  A compaixão e a comunhão dão espessura à vida humana que ameaça liquefazer-se neste século XXI, que já vai para o final de seu primeiro quartel.

A compaixão e a comunhão nos mostram o verdadeiro rosto do Deus da revelação. Rosto feito de amor e não de ira; de vulnerabilidade e não de distância; de perdão e não de castigo; de bênção e não de maldição.  A Igreja e a liturgia nos convidam a seguir Jesus em direção a Jerusalém e a acompanhá-lo na entrega de sua vida.  E a fazê-lo com sentimentos de com-paixão e comunhão, para que nossa vida também realize esse êxodo do próprio amor, do egoísmo que nos mata e nos isola em direção ao dom que é a única coisa capaz de realizar-nos como pessoas humanas.


* Teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio
Autora de "Deus amor: graça que habita em nós" (Editora Paulinas), entre outros livros. (www.users.rdc.puc-rio.br/agape)
 

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