quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Padre Tiago diz que a educação no Brasil é hidrocefálica

 Por Andrielle Mendes, especial para o Diário de Natal

O belga Jacques Theisen, mais conhecido como padre Tiago, chegou ao Brasil em 1968 a bordo de um navio. Na bagagem trouxe toneladas de medicamentos para ajudar quem ainda nem conhecia. Foram 14 dias de viagem, atendendo a um convite de Dom Nivaldo Monte, na época Arcebispo de Natal. Na cidade construiu 43 igrejas, 34 jardins de infância, 11 ambulatórios e cinco consultórios odontológicos. Os projetos Casulo e Elo, desenvolvidos pelo padre na periferia natalense, se tornaram referência nacional e foram implantados em mais 17 estados brasileiros. Pelo Casulo, passaram mais de 36 mil crianças natalenses. Pelo Elo foram mais de 45 mil. Em agosto, padre Tiago completou 55 anos de sacerdócio, 42 deles só no Brasil e encerrou suas atividades como pároco. Ao Diário de Natal, narrou sua odisséia e os projetos desenvolvidos.

Na Bélgica, o senhor descobriu a importância de se investir na pré-escola. O que o levou a investir na construção de jardins de infância em Natal?

Queria transmitir o conhecimento que havia adquirido. A eucaristia ensina a compartilhar, repartir. Repartir o quê? O que somos, o que temos, o que sabemos, o que pensamos, o que fazemos, o que sentimos. São as seis dimensões da partilha. No dia em que o cristão descobrir isso, vai encontrar o sentido da eucaristia. O cristo fez as seis coisas. Deu até a última gota de sangue. A cruz lembra isso. O caminho que ele percorreu. Ele nos deixou um mandamento. Amai-vos. Doai-vos. Mas o que é o amor? Tem três palavras. Filos é amizade, simpatia. Depois tem Eros, o erótico. A terceira dimensão é Ágape, que quer dizer o dom, o doar. Quando Jesus diz 'amai-vos uns aos outros', ele pede para a gente doar-se. O mundo é só fachada, só aparência, só dinheiro. Tudo isso é fumaça, não serve de nada. Você vive numa ilusão. O doar não. Um pedaço de chocolate repartido é mais gostoso.

O senhor acredita que sua vida sacerdotal foi uma vida de doação?

Foi tentar, porque todo mundo tem seus defeitos, seus limites, sua impaciência. Ninguém é perfeito. Ninguém faz nada sozinho.

Como era Natal na época que o senhor chegou aqui?

Natal não tinha nem 200 mil pessoas. Só tinha um semáforo. Um. No Grande Ponto, onde foi construído o Luzor. É outra lição que recebi aqui. Os velhos batiam papo lá. Tinha um edifício. Um. Era o Café Filho, que tinha somente três andares. Não existia uma torre em Natal. Era como se fosse (o bairro de) Felipe Camarão agora. E também nenhum prédio. Então, lá onde existe o Ducal, eu via entrar caminhões carregando ferro, tijolos, areia. E os velhos, como eu agora, perguntavam: 'o que vai ter aqui, meu Deus do Céu?' Passou um bom tempo e não saia nada. Mas lá embaixo existia um canteiro de obras, com betoneiras trabalhando. Eles começaram a construir 17 andares em cima disso. Cada vez que eu passo no Ducal, eu me lembro do alicerce, da fundação. Quanto mais você investe no alicerce, mais andares você constrói. Na Educação é a mesma coisa. Você tem de investir o máximo na pré-escola, porque a criança começa a sua socialização (nos primeiros anos). Os primeiros educadores são a família. É lá que a criança aprende a obedecer aos horários, a escovar os dentes, a obedecer alguém que não é a mãe, a ter disciplina.

Por que o senhor optou pela pré-escola?

Estrangeiro vindo sozinho para um país como esse sem conhecer as raízes não é salvador da pátria. Não traz soluções não, porque não conhece. Aí você tem que ver (os problemas), que é a primeira etapa de qualquer coisa. Depois, tem que prever aquilo que você gostaria que mudasse. Depois, prover recursos e promover ações. Quando cheguei em 1968, entendi que a educação era uma coisa essencial. Mesmo assim, só consegui construir o primeiro jardim de infância em 1971, que era o Pinóquio, em Igapó. Depois , construí um jardim de infância no mereto. Foi de lá que saiu uma aluna que é doutora hoje. Quando um estrangeiro chega num paísdesconhecido e encontra uma situação desumana, pensa numa forma de mudar as coisas. Para mim, a única forma de mudar a realidade era investir na pré-escola, uma solução a longo prazo. É claro que existiam problemas emergenciais como a fome. Foi aí que pensei no Inan (Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição). Conversei com um amigo, presidente do instituto, e disse que ele precisava trazer comida para alimentar o povo. Todos os meses, ele trazia 30 mil quilos de alimentos. Aqui moravam cinco mil pessoas. Cada uma recebia seis quilos de alimento. Tinha fubá, feijão, arroz, farinha, leite. Depois pensei 'precisamos fazer alguma coisa para erradicar os vermes'. Então, fizemos vários filtros de barro e distribuíamos as velas e torneiras. Eram coisas tão fáceis, como construir cisternas no interior. A coisa que me escandalizava mais era o nordestino não aproveitar a água da chuva e sofrer com a seca. A chuva que caía no inverno não era aproveitada para nada. Aí você tinha de pagar caminhões-pipa. Os políticosse aproveitavam e diziam 'se você não votar em mim, o caminhão já era'. O pessoal corria para buscar água suja. Foi aí que começamos a construir cisternas.

Como o senhor avalia a educação hoje em dia?

A educação no Brasil é hidrocefálica. A cabeça, que é o ensino superior, é enorme. O vestibular é o pescoço. Quem conclui o segundo grau já é um privilegiado. Nem trinta por cento dos jovens chega lá. O corpo vai diminuindo. O jardim de infância são as pernas que mais parecem dois alfinetes. Os gestores não investem não. A metade de Natal está na Zona Norte. Os políticos só visitam a Zona Norte agora. Abraçam os moradores e tomam banho de álcool para se desinfetar.

O senhor desenvolveu dois importantes projetos na área da educação. Fele um pouco.

Combinei com o superintendente da Legião Brasileira de Alfabetização (LBA) que realizaríamos dois projetos em Natal: Elo e Casulo. O Casulo atendia crianças de três a seis anos na periferia de Natal. O Elo era a continuidade. Atendia de sete até 17 anos. Foi numa universidade da Bélgica que aprendi a importância da Pré-escola. Para mim, foi uma revelação que nunca tinha pensado. Mais de 36.440 crianças passaram pelos jardins de infância do projeto Casulo. Na primeira turma, criada em 1973, foram matriculados vinte alunos. Das 20 crianças que estudaram na primeira turma, quatro são professores da universidade federal.

O senhor se considera um padre revolucionário?

Me considero um 'evolucionário'. Toda mudança tem que ser para melhor e leva algum tempo para ocorrer. A própria natureza nos ensina isso. Observe aquele pé de manga (no terreno do Casarão onde o padre mora). Há quarenta anos, ele era bem menor. Mas para crescer 50, 60 centímetros demorou 40 anos. O defeito de qualquer governo é abandonar o que o antecessor começou. Tudo o que o outro realizou de bom é deixado para trás.

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