domingo, 24 de abril de 2011

Dia de ressurreição é sexta-feira


Deixemos as questões da Igreja e ocupemo-nos do cotidiano.Os cristãos celebram a ressurreição no domingo de páscoa, uma só vez ao ano. No Brasil, curiosamente, a ressurreição acontece todas as sextas-feiras. É a hora em que peões e operários terminam o trabalho estafante da semana. Ai se reunem alegremente em grupos nos botequins e nos restaurantes populares para tomar a sua cerveja.

Tudo é sorriso e amabilidade. A faladeira é grande. Nas mesas as garrafas de cerveja se sucedem. E come-se coisa barata mas gostosa: asas de frango com farofa e molho à campanha; churrasquinho de carne com fritas. E no fim de tudo meio copo de cachaça. E a saideira demora de acontecer. São várias porque sempre há alguem que paga mais uma rodada.

Os rostos se transfiguram. Percebe-se pelos corpos gastos, pelas caras cansadas e pelas roupas surradas que são pessoas exploradas. Foram submetidas durante toda uma semana à dura faina da humilhante produção capitalista. Esta não valoriza a criatividade do trabalhador.O capitalismo não ama a pessoa, apenas sua força de trabalho, seus músculos, sua cabeça, sua habilidade e especialmente sua produtividade.

Mas a sexta-feira é o dia em que a vida dá o troco. Acontece a ressurreição. Os seres humanos recuperam sua humanidade perdida, redimidos das cadeias que os prendem a quatro paredes, às máquinas melancólicas, aos escritórios higienizados com seus computadores frios.

Conversa-se de futebol. Cada um é mestre nessa arte. É a um tempo treinador e critico dos treinadores e dos craques. Depois passa-se à mulheres. Contam-se casos reais e inventados, piadas, vazão da libido reprimida. E as "popozudas" e as "gostosas" merecem muitos comentários. Às vezes, fala-se de política, para injuriar os governos, para esculhambar o Lula, embora depois acabem votando nele.

Mas o bom mesmo é a conversa fiada, a conversa mole, a gratuidade de falar, rir, tomar cerveza, beliscar comidas. Alguns mais entusiasmados e já sob o efeito da cachaça falam mais alto. Outros até abraçam o amigo ao lado como se fosse sua namorada. Só falta beijá-lo.

Eu reparo as figuras: aquele negro com um corte no rosto revela uma bondade irradiante e doce; sorri com uma doçura que é já primícias da verdadeira redenção no paraiso do proletariado; esse queria tê-lo como irmão. Aquela outra mulher gorda, bebe, belisca asas de frango, fala alto; seu olhar é penetrante; reparte o vinho barato – Sangue de Boi – com a companheira em frente; esta seria uma amiga que gostaria de ter. Tudo aqui é leveza, alegria, própria da ressurreição. Diz-se que no Ocidente o sorriso só entrou após a fé na ressurreição, quer dizer, com a vitória da vida.

Eu mesmo num canto peço minha porção de asas de frango com farofa, tomo minha cerveza e fico observando. E me enlevo. A opressão não consegue matar a vitalidade da vida.

Quando vou pagar, depois de repetir o prato, vejo que é uma ninharia. Pago quase o dobro em gojeta. E saio emocionado em direção ao carro, chorando de alegria por assistir a ressurreição acontencendo, testemunhando a vida invencível e indestrutível dos pobres e dos oprimidos, o nosso povo, os preferidos de Deus. A ressurreição acontece de novo, cada sexta-feira, na esperança de que um dia vire um eterno domingo de páscoa. Essa fé vale pra mim mais que todas as discussões sobre o novo Papa.

Leonardo Boff - Teólogo e escritor

Nenhum comentário: