PRINCÍPIO de semana e término de um domingo repleto de ócio em que o crepúsculo já fenecera e o relógio do tempo, através de lucina, dizia que já passava das vinte horas.
A noite de verão dava-nos o privilégio de deleitarmos na leve brisa vinda do mar por caminhos e ruas, entrando portão a dentro para acariciar a mim e ao nosso filho que embalávamos na rede, com a porta da sala entreaberta.
Quando num triscar de olhos, vi passar velozmente um indecifrável vulto que, certamente, não era o vento. Algo passara sob o meu nariz e do da mãe do pequerrucho, a qual, muito aflita me perguntou se eu vira o que passara. Sem hesitar, respondi-lhe:
“Foi um gato”.
No meu âmago, fora a intuição que respondera. Fiquei a questionar comigo mesmo a minha resposta.
Yrla, por sua vez, resolveu passar a limpo nossa dúvida e, bem chegou à porta, viu dentro de nossa casa, no alpendre, um homem.
“Meu Deus, um homem!”
Yrla se desesperou.
Fiquei a pensar. Se aquilo era homem, este seria esquisito demais. Apesar de bípede, andava de quatro e muito rente à parede, feito bicho. Até me fez lembrar Manoel Bandeira. Sim, estava indo em direção ao latão de lixo que se encontrava lá atrás, no quintal.
Pois sim, o incrível é que aquele homenzinho conseguira entrar na nossa hospitalidade sem pedir licença, mesmo com os muros altos e os portões fechados a cadeados.
Calei-me a meditar:
“Quem tem fome não pede licença”.
Fiquem sabendo, leitoras, que o tal bicho reduzira tanto que se fizera mínimo em estatura. Ou seja, se eliminara a quase nada só para conseguir transpor o ínfimo espaço entre o portão de ferro e o chão. Passara com facilidade e habilidade de bicho larápio e esfomeado. Quão infinda era a sua fome. Pois se apresentava numa inanição esquelética de mendigo terminal.
Na rede estava, na rede permaneci. Brincava com nosso pequerrucho. E ao mesmo tempo refletia...
“A fome cega”.
Yrla, desesperada e assustada, me chamava com aflição para pegar o homem que, àquelas tantas, já vinha sendo expulso por outro. Este, por sua vez, já se encontrava no latão e se fizera dono do lixo primeiro. Isto é, por insistência também da fome que corroia seu estômago. Adotara o lixo como patrimônio exclusivamente seu e de mais ninguém.
O dono do latão, por lógica e por concepção da própria natureza, era um predador inato que para se alimentar teria que procurar a sua presa. Possuía, portanto, as características próprias de um antropófago na essência de sua espécie. Mas, parece que evoluiu aos extremos, a ponto de rejeitar seu alimento natural para querer, agora, se alimentar dos restos de comida deixados pela dona da casa, no depósito de detritos, à noite.
Não satisfeito com a presença do invasor - o esquelético alienígena - o dono do lixão só teria mesmo é que se defender com unhas e dentes, literalmente. Pois, que, ali era território onde se encontravam seus víveres cotidiano, sua existência.
Sem que o invasor esperasse, outro homem saltou do muro. E, com uma habilidade gatúnica, surpreendeu o visitante desatento de fome e o fez retornar para seu lugar de origem. A rua.
Mais uma vez, o homem é obrigado a encolher-se a nicles, de barriga num oco de vazia. Tendo que passar novamente pelo estreito espaço do portão, só que, agora, triste e decepcionado até a alma, por faltar-lhe o pão.
E eu, na rede, a brincar e a pensar...
“Lixo também é sinônimo de pão”.
O pobre homem, retornando, passa na mesma velocidade do vulto de antes. Só que, desta vez, num grito estridente num desespero de cortar coração de qualquer humano até como o meu e o de Yrla, que ainda se encontrava à porta, a esperar por mim para expulsar o invasor.
Sequer movi um dedo para sair de onde estava, e, ainda na rede, vi o pobre homem passar correndo, quase a chorar. Ia sendo rebocado pelo dono do lixão que também era seu irmão de víveres.
Particularmente, ficara muito contente por não sair de minha rede para pegar aquele coitado de homem. Mas o que me deixou intrigado, apesar do insignificante vulto que vi passar, foi a impressão de ter visto rabos em ambos os homens. Longas caudas.
Isto, foi a única coisa que pude observar de soslaio naqueles pequeninos e estranhos homens.
“Mas quanta indiferença!”
Disse Yrla a se voltar para mim, com um riso que me deixou em dúvida.
A noite de verão dava-nos o privilégio de deleitarmos na leve brisa vinda do mar por caminhos e ruas, entrando portão a dentro para acariciar a mim e ao nosso filho que embalávamos na rede, com a porta da sala entreaberta.
Quando num triscar de olhos, vi passar velozmente um indecifrável vulto que, certamente, não era o vento. Algo passara sob o meu nariz e do da mãe do pequerrucho, a qual, muito aflita me perguntou se eu vira o que passara. Sem hesitar, respondi-lhe:
“Foi um gato”.
No meu âmago, fora a intuição que respondera. Fiquei a questionar comigo mesmo a minha resposta.
Yrla, por sua vez, resolveu passar a limpo nossa dúvida e, bem chegou à porta, viu dentro de nossa casa, no alpendre, um homem.
“Meu Deus, um homem!”
Yrla se desesperou.
Fiquei a pensar. Se aquilo era homem, este seria esquisito demais. Apesar de bípede, andava de quatro e muito rente à parede, feito bicho. Até me fez lembrar Manoel Bandeira. Sim, estava indo em direção ao latão de lixo que se encontrava lá atrás, no quintal.
Pois sim, o incrível é que aquele homenzinho conseguira entrar na nossa hospitalidade sem pedir licença, mesmo com os muros altos e os portões fechados a cadeados.
Calei-me a meditar:
“Quem tem fome não pede licença”.
Fiquem sabendo, leitoras, que o tal bicho reduzira tanto que se fizera mínimo em estatura. Ou seja, se eliminara a quase nada só para conseguir transpor o ínfimo espaço entre o portão de ferro e o chão. Passara com facilidade e habilidade de bicho larápio e esfomeado. Quão infinda era a sua fome. Pois se apresentava numa inanição esquelética de mendigo terminal.
Na rede estava, na rede permaneci. Brincava com nosso pequerrucho. E ao mesmo tempo refletia...
“A fome cega”.
Yrla, desesperada e assustada, me chamava com aflição para pegar o homem que, àquelas tantas, já vinha sendo expulso por outro. Este, por sua vez, já se encontrava no latão e se fizera dono do lixo primeiro. Isto é, por insistência também da fome que corroia seu estômago. Adotara o lixo como patrimônio exclusivamente seu e de mais ninguém.
O dono do latão, por lógica e por concepção da própria natureza, era um predador inato que para se alimentar teria que procurar a sua presa. Possuía, portanto, as características próprias de um antropófago na essência de sua espécie. Mas, parece que evoluiu aos extremos, a ponto de rejeitar seu alimento natural para querer, agora, se alimentar dos restos de comida deixados pela dona da casa, no depósito de detritos, à noite.
Não satisfeito com a presença do invasor - o esquelético alienígena - o dono do lixão só teria mesmo é que se defender com unhas e dentes, literalmente. Pois, que, ali era território onde se encontravam seus víveres cotidiano, sua existência.
Sem que o invasor esperasse, outro homem saltou do muro. E, com uma habilidade gatúnica, surpreendeu o visitante desatento de fome e o fez retornar para seu lugar de origem. A rua.
Mais uma vez, o homem é obrigado a encolher-se a nicles, de barriga num oco de vazia. Tendo que passar novamente pelo estreito espaço do portão, só que, agora, triste e decepcionado até a alma, por faltar-lhe o pão.
E eu, na rede, a brincar e a pensar...
“Lixo também é sinônimo de pão”.
O pobre homem, retornando, passa na mesma velocidade do vulto de antes. Só que, desta vez, num grito estridente num desespero de cortar coração de qualquer humano até como o meu e o de Yrla, que ainda se encontrava à porta, a esperar por mim para expulsar o invasor.
Sequer movi um dedo para sair de onde estava, e, ainda na rede, vi o pobre homem passar correndo, quase a chorar. Ia sendo rebocado pelo dono do lixão que também era seu irmão de víveres.
Particularmente, ficara muito contente por não sair de minha rede para pegar aquele coitado de homem. Mas o que me deixou intrigado, apesar do insignificante vulto que vi passar, foi a impressão de ter visto rabos em ambos os homens. Longas caudas.
Isto, foi a única coisa que pude observar de soslaio naqueles pequeninos e estranhos homens.
“Mas quanta indiferença!”
Disse Yrla a se voltar para mim, com um riso que me deixou em dúvida.
M. C. GARCIA é poeta e filósofo.
Um comentário:
Olá, camarada!
O poema a que se referiu é "O bicho", de Manoel Bandeira - um dos mais cruéis (mas verdadeiro) retrato do que está hoje ao nosso lado.
Resta-nos a pergunta (retórica): o que fazer?
De resposta em mãos, coragem para executá-la.
Bem como devemos tentar decifrar o sorriso de Yrla no final da crônica.
Um abraço fraterno,
Antonio.
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