Por M.C. GARCIA, poeta e filósofo
NUMA decrépita Biblioteca margeada por várias mangueiras, onde raras vezes aparece alguém para estudar, apesar do espaço agradável para leitura, termina atraindo outra espécie de animal: morcegos. Estes, atraídos pelo doce cheiro dos frutos, competem com um único leitor: Memor. Homem aposentado de meia idade que faz da leitura o seu lazer exclusivo.
NUMA decrépita Biblioteca margeada por várias mangueiras, onde raras vezes aparece alguém para estudar, apesar do espaço agradável para leitura, termina atraindo outra espécie de animal: morcegos. Estes, atraídos pelo doce cheiro dos frutos, competem com um único leitor: Memor. Homem aposentado de meia idade que faz da leitura o seu lazer exclusivo.
Naquela época do ano a velha biblioteca é um lugar que atrai apenas os noctívagos que se abrigam durante o dia. Visto que o espaço fica sempre fechado eles se sentem seguros nas salas escuras.
Ao cair da tarde, Memor gosta de desfrutar a vida lendo bons livros de literatura, de preferência romances modernistas como de Jorge Amado e outros.
Certa vez estando a sós no seu taciturno mundo de de leitura, Memor sentiu um vento frio soprar-lhe a nuca.
Um frio que lhe correu toda espinha deixando-o com os nervos a flor da pele e o coração aterrorizado, a palpitar com o súbito. Seus cabelos e pelos dos braços arrepiados eram a denúncia do seu terror. Mas logo à sua frente, descobriu a causa de tudo aquilo.
Era um morcego que num rasante de bicho alado, peitado e danado, fora pousar num caibro,
bem à vista de Memor. Lá de cima, ficou a se balançar feito pêndulo de relógio. Como se o quisesse hipnotizar para lhe sugar o precioso líquido purpúreo de humano.
Memor, aterrorizado, observa o animal e antes mesmo que ele decidisse o atacar novamente, toma iniciativa primeiro e vai à caça do pobre indefeso...
De posse do único apetrecho que tinha em mãos, deu a primeira investida atirando o chinelo de couro contra a pequena criatura, que por pouco não o acertou. Porém, o morcego nada pode entender sobre aquele ataque surpresa.
Estava tão inocente quanto o homem. Assim, como este sempre vinha à tarde ler, ele sempre fazia aquele vôo de fim de tarde. Porém, o tempo estava para chover e escurecera mais cedo. Havia se acordado para exercitar o corpo em seguida, iniciar a sua rotina de noctâmbulo. Por isso, a desgraça estava para acontecer.
Mesmo sem nada compreender, de uma coisa ele tinha certeza: tinha que escapar dos violentos ataques do enfurecido homem. E assim voou de canto a canto; voou o mais rápido que pode para não ser morto.
Porém, a fúria do homem aumentava à medida que errava seu ataque. E mais colérico voltava para dar fim ao pobre e indefeso noctívago. Este, vendo uma brecha de sobrevivência no telhado, deu um vôo direto e certeiro para escapar do cerco.
Mas, quando a alguns milésimos de segundos, já atingindo a saída, sente também atingida sua asa esquerda, que cambaleando bate na parede e se estatela no chão feito pacote fofo de nada, já sem forças, sem sentidos, sem vida.
O vitorioso homem, satisfeito por cumprir sua missão, o pegou pela asa ferida, pobre e inútil morcego, ainda quente pelo último fio de vida, o pôs dentro de um vidro com álcool para servir de exposição a centenas de leigos, ignorantes à cena cruel, como troféu de sua vitória medíocre.
Recuperado do susto e satisfeito do embate, o enigmático homem retoma sua leitura. Está a ler um romance realista digno dos tempos Modernos, estilo Jorge Amado, em que a cena se desenvolve com o namorado sendo acariciado pela sua amada. Esta, por trás dele, passa-lhe as mãos em seus cabelos e vai lhe roçando a nuca com seus lábios cálidos de desejos. Nesta hora, leitor e personagem passam a viver uma realidade fictícia na qual o próprio leitor parece se envolver muito mais e por total. Com a cena que ler, faz se sentir tão abstraído pela leitura inebriante e agradável.
Memor se faz, literalmente, personagem em vida em ato em fato. Porque se sente como próprio personagem vivendo as mesmas sensações, as mesmas delícias das carícias.
Completamente absorvido pela leitura e pela realidade que o envolve, sente um suor quente escorrer-lhe no peito e, ao mesmo tempo, a cair sobre a mesa, o livro, o chão, um líquido escarlate.
Está entorpecido pela ficção e pela realidade, procura entender se está a sonhar ou a dormir.
Despertado daquele arrebatamento e torpor, ver com toda clareza dos seus olhos que um dia Deus lhe há de ofuscar um morcego voando satisfeito, com as mandíbulas ainda ensangüentadas; com a língua a saborear daquele doce líquido escarlate de homem.
Era justamente a mulher do morcego que ele acabara de exterminar.
Ensangüentado, com a vista agora a se ofuscar, tem à sua frente mais de um morcego. E ainda de posse da mesma arma da primeira vítima, procura agir mas não consegue.
Consegue, na verdade, se ver reduzindo abruptamente de tamanho. De repente sente-se um rato a rastejar sobre a mesa, a sobejar-lhe o próprio sangue, vai consumindo as páginas daquele desgraçado e maldito livro que lhe custara a vida?
Num salto que dá de sobre a mesa, esperando cair no chão, sente-se levitar como um pássaro feliz e alegre por ter alcançado a liberdade que todo homem sonha um dia ter.
Porém, ele não é pássaro. Não é rato. Não é homem. É a própria figura de HOMEMORCEGOMEM.
Quando deixa a Biblioteca, encontra o mesmo Amor que o envolveu no romance que leu momentos antes. Tudo é muito confuso na sua cabeça.
Mas fica a certeza de que o Amor que sente lhe dá uma sensação de liberdade indescritível e de eterna leveza.
Bom, está em movimento. Porém, não consegue com clareza discernir se voa andando ou se anda voando.
M.C. GARCIA é poeta e filósofo
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